quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Pronta.

Saíra correndo desembestada, sem rumo, sem bússola, sem destino..
Quando de súbito parava sem razão aparente, sem freio, sem aviso.
Sapateava que fosse por pirraça,  por formigas lhe subindo as canelas ou de uma alegria a explodir-lhe as veias.
Levantava os braços, erguia-os ao céu e girava em torno de si mesma...
Seria um chamado a chuva,  um ritual de agradecimento ou um pedido de socorro?
Sorria...
Só ria...
Mas ria!
Da dor, do destino, dos fracassos, do malogro, da incerteza ou da solidão.
E chorava...
Com vida, da vida, para vida...
E sorria de novo...
Um tanto que pedindo sabe-se lá a quem ou aquém:
 _ Dê novo!
Gargalhava para si, por si, consigo.
E disparava a passos largos e rápidos.
Quando começou a gritar por nada, por tudo, com ninguém, para si..
Para a se, ouvir...
Marchava mais um tanto até ofegante ficar, vermelha, descabelada...
O coração disparado,  pressão alterada.
Uma dor aguda no pé do peito a lhe fincar...
Segurava as saias.. Esmagava-lhes entre os dedos deixando suas partes a mostra...as  inteiras e  as pela metade.
Em seu contorno, o  tempo fechava... E cinza... Trovejando. Relampejando.. E negro, medonho, bravo.
Ela sorria...Dentes abertos... Bocas abertas... Sons abertos.
Entranhas abertas, imaginários abertos, peito aberto.
Olhos fechados.. 
Sorrindo? Olhos sorriem? Sim, se choram porque não haveriam de sorrir?
Olhos desejam,  se indiferenciam, esfriam, atravessam, odeiam. Andam a parte, lado a lado com as idéias.
Mas com as  idéias  dela, andavam dentro.
Dentro de tudo e por tudo.
 Ainda dobrando-se de dor em suas estranhas de tanto correr, ainda permanecia...
De braços abertos....Abraçando...
A quem? A que?
Rompia o percurso e dançava no tempo, no espaço... 
Pra ninguém, sem deixar-se dizer como e pra quê. 
Soluçava... Boca seca...Sem ar...
Peito batendo, batido, mas nada abatido..... 
Mantinha a dança...
Cabeça deitava para trás... Pescoço encolhido.
Um música interna lhe causava ritmos...
Sua música interna...
E ela ouvia.
Ouvia.. Ouvia... Ouvia...
Algum movimento, ritmado lhe aproximara.
Vindo lá daquelas bandas...
Dessas lá dos interiores...
Porque tudo a sua volta era dos interiores...
Dos interiores das terras, dos mapas, das culturas.....
Dos interiores das almas, das vidas, das  esperanças ..
Dos interiores dos ventres, dos quentes, dos gozos.....
Dos interiores do peito, das dores, dos amores...
Causava...
Era uma banda com inúmeras pernas, inúmeros braços, inúmeras bocas, inúmeros olhos e mãos.
Mãos masculinas...
Inumeros membros masculinos.
Inumeros músculos masculinos.
Inúmeros masculinos.
Um destes "masculinos" lhe aproximava lhe provocando ao som do acordeon..
E a ela, abria-lhe e fechava-lhe os pensamentos... Alongava-lhe lentamente e bem alto suas abstrações.
E abria-lhe e fechava-lhe as idéias...
As idéias...
Outro membro dos "masculinos" lhe contornava pelas costas.
Arranhava o violino,  os pelos,  as estranhas.
O trompete soprava, soprava, soprava...
Mas ela ainda ardente,  quente.. ...
Delicadamente e...  violentamente.
O orgãozinho dedilhado caminhando ao seu lado...
Representado por chapéus brancos... E calças brancas... E camisas engomadas brancas.
Daquela mulher, dedilhava todo o seu ritmo e o seu tempo.
O violão tocava-lhe as formas...
E ela dançava entre todos aqueles sons, texturas e ângulos...
E os olhos da banda acompanhavam a aquelas suas maneiras, sem maneiras.
Sem timidez, sem pudor e toda amor.
O tambor...
Batia-lhe as idéias...
As idéias respondiam...
E batiam de novo..
E as idéias respondiam de novo....
Banda que durara-lhe o tempo da  água começar a cair...
Os corpos masculinos corriam para lados diversos...
Abaixo de uma árvore aqui..
De uma casa ali..
De um telhado lá..
E ela?
Deitou-se ao chão, esticou-se inteira, desabotoou-se a blusa e chutou seus sapatos...
E ria enquanto pele toda encharcada...
E seus olhos molhados de água doce da chuva e água de sal de lágrima... Lagrima de tanto rir. Lágrima de emoção. Lágrima de descolamento.
Cantava com tom de choro.
Quem sabe o tom do choro?
Cantava com o tom/nota do riso..
Quem sabe o tom/nota do riso?
Cantava desafinada, mas afinada com o que lhe causava.
Com o que lhe causava...
A chuva engrossava.
Doía-lhe a pele...
Engrossava...
Roxiava-lhe a carne...
E engrossava...
Seus pingos na lama eram grossos.
Gotas que batidas no chão voltavam-lhe e espirravam-lhe a cara.
Quem é que vai dizer que essas obsceniedades da natureza também não lhe causavam?
O trovão enfurecia e  ela mantinha-se exposta com seu resto de pano que quase nada cobria...
Molhado... Doce...
Suado... Salgado..
Transparente e agora encardido...
Ela cravava seus dedos na terra e levantava a lama em suas palmas..
A terra em suas unhas lhe tornava com a mesma, uma só intensa ou uma só lama.
Sentia a dor da água lhe batendo, surrando...
Afrontada pela exaustão decorrente pela  água,  ventania e confusão, levantava-se lentamente do chão...
Até que seus pés lhe golpearam e lhe escorregaram lentamente ao concreto.
Ela, pensou de que maneira poderia apoderar-se  a seu favor, essa malícia da natureza. Levantou-se lentamente e para marcar a experiência, deixou-se escorregar novamente e agora por querer.... 
E sublimou assim esse vai e vem escorregadiço e  inesperado  em uma experiência real e  indispensável.
Depois de tanto rítmo, de tanta corda, e surras e olhos, e sopros, e roxos, e  cortes e gozos, não mais corria...
Sentia ainda a água bater-lhe, surra-lhe como aquela que podia impedir-lhe ou prepará-la como uma rocha..
E mais uma vez, essa violência toda já também começara a causar-lhe.
Era mesmo uma fêmea de uma consequência inteira.
Abaixava a cabeça para não afetar-lhe os olhos...
A chuva jorrava-lhe pelos cabelos e escorria-lhe os queixos, entrava-lhe a boca, e lhe tomava de engasgos..
Ela, mergulhando naquelas gotas que caíam do ar, sorria, trinava, chorava, bailava, enquanto toda....
E enquanto absolutamente sozinha...
Parte desnuda, parte segurando restos de linhas entre suas coxas...
Era tudo que lhe sobrara.
E ainda ali, ameaçada pelo relâmpago e enfrentado ao mesmo...
Relâmpago que vira dia..
Relâmpago que mata gente...
Relâmpago que anuncia chuva.
Quem não  teme a morte é aquele que  não tem coragem para viver...
Estufava o peito e tremia...
O vento lhe tacava folhas, lhe tacava gotas e lhe empurrava o peito, o equilíbrio, as querelas..
A folhas  lhe grudavam aos ombros, aos músculos, aos fios, aos pés, e ao seu resto de pano rasgado e obsceno.
E ela obstinada...
Prosseguia.
Avançando e  lembrando das saídas na infância em que aventurava-se para estar assim nessas enchurradas...
Nessa exposição toda...
Nessa adrenalina toda...
Nessa insensatez toda..
Nessa graça toda...
Nesse gozo todo...
A chuva afinara e  ela desbravava rumo a um destino certo.
Seus cabelos anelados molhados, grudados a testa, ao pescoço , na cabeça, a boca, nos seios, ao lombo...
Soluços de corpo quente com vento frio, com alma quente, com água fria, com pensamentos quentes, com desejos quentes e consequências frescas...
O céu fora abrindo, nuvens indo e sol clareando...
E ela perdurando...
Dançando ao rítmo do que lhe causara aquela consequência toda..
Molhada toda..
Suada toda...
Menina toda..
Desejosa toda..
Mulher toda.
Intensa toda..
Destemida toda..
Lubrificada toda...
Cor de terra toda...
Descalça...
Despida...
Um resto toda..
Inteira toda...
E o sol saíra de vez, iluminando sua passagem e aquecendo sua tranquinagem...
Ela...
Chispou-se com as mãos para o alto, aclamando, agradecendo, chamando, questionando, acolhendo...
E quando avistara o seu destino.
Diminuíra teus passos...
Aproximando-se, percurso marcado de pés na grama..
Parou frente a uma  porta de madeira velha e descascada.
Casa pobre, simples toda e suficiente toda.
E já ela.... molhada,  suada,  alamada...
Meio nua, meia vestida...
Meio cansada.
Nada satisfeita..
Mas certamente toda desejosa.
A porta abrira-se a sua frente...
Fora olhada por todas as partes e observada em todos os seus detalhes...
Molhados, suados, sujos e arrepiados.
Olhos cruzados, sorrisos no canto da boca, nenhuma palavra, respiração ofegante.
E ela bem imunda,  bem encharcada, com o peito exausto e respirando bem vazio e bem cheio, bem vazio e bem cheio... E quando o coração começara a alcançar um ritmo menos disparado,  dissera:
_Estou pronta.
Nem mais uma palavra.
Jogou-se frente ao corpo a sua frente, atravessando a porta e caindo para o outro lado.
Apenas bocas consentindo, olhos atravessados, movimentos confusos, invasões a casa de  tijolos descascados e poucas janelas.
Outro som?
Sim... De porta batendo, de cama batendo, de janelas batendo, de corpos batendo e ritmos batendo.
Ponteiros batendo dentro da casa. A banda batendo em torno da casa. O coração batendo dentro do peito, corpos batendo um contra o outro.
E no final, algumas vozes que não diziam a respeito de um diálogo ou uma briga insana e muito menos de um monólogo, mas eram vozes...
Ou não eram... Ou eram fuxicos ou não eram... Ou eram gemidos ou... eram? 
A certeza é de que tratava de  uma outra dimensão da linguagem... Bem clara, bem compreendida e desejada.
Passada horas, caiu-se sobre o mundo um único silêncio e uma única ausência de movimentos.
Sem qualquer sinal de vida.... O mundo ou fora tomar um café, ou encostara na sombra ou viajara ou morrera. O real daquela hora é de que tudo que se podia imaginar ali, já era abstrado... Até começar a causar de novo...
E fora o que acontecera.
Ela interrompera o café do mundo, jogou o sol na sombra, acabou com as férias e acordou tudo...
Agora renovada e untada, interrompeu com outro riso travado no canto da boca, com olhos acordados, boca salivando, mãos tateando, uma respiração nervosa e mais uma vez  disse..:
_Pronta...










Míriam Machado
23 de Novembro de 2010





3 comentários:

  1. Ei Miriam .. comecei a ler sem maiores pretensões e fui envolvido pelo texto e levado a ter sensações até o final da história .. quando ví já estava imaginando a relação da "personagem" com a chuva e o barro e a sua sensualidade casual. Muito bem escrito .. adorei .. quero ler outras coisas suas .. beijos

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  2. Miiiiiii! Você escreve imensidades!!!!!!!!!!! Eu quero saber agora é do livro! Ju

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